No exame cautelar sem corpo de delito a perícia deve ser prejudicada.

Exame de Lesão Corporal

Quero discutir nesta postagem como devemos proceder e responder aos quesitos oficiais nos Exames de Lesão Corporal solicitados pelas autoridades policiais quando não existe Corpo de Delito constituído. Não estou me referindo à ausência de lesão corporal no exame, estou me referindo mesmo é na ausência do Corpo de Delito.

Isso parece absurdo para você?

É bem mais comum do que você possa imaginar. E, é bem provável que você esteja realizando estas perícias de forma incorreta, não por incompetência, mas pela impropriedade doutrinária que nós é ensinada nas Academias de Polícia durante nossos treinamentos para estarmos aptos como médicos-legistas.

Então vamos nos ater a Doutrina Médico Legal:

O art. 158 do Código de Processo Penal[1] é incisivo ao normatizar:

“Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo suprimi-lo a confissão do acusado.” (grifo meu)

O exame de lesão corporal será requisitado quando houver violação da garantia do direito à segurança, no caso específico à preservação da incolumidade das pessoas. O objetivo deste exame é encontrar, no corpo da provável vítima, os vestígios deixados pela prática do delito e estabelecer o nexo causal entre eles e a infração[2]. Portanto, faz-se necessária uma ação vulnerante de um agressor contra sua vítima, ofendendo sua integridade corporal ou sua saúde, deixando vestígios e que estes possam ser relacionados ao delito em apuração.

“Examinar alguém que não apresenta vestígio de ofensa à sua integridade corporal, ou a sua saúde não está previsto no CPP, mesmo porque não tem sentido”.

Chu-En-Lay Paes Leme – Perito Oficial Médico-Legista

No nosso dia-a-dia realizamos vários exames de lesão corporal, onde o ofício da autoridade policial determina a realização de Exame de Lesão Corporal (sem a referência de ser um exame cautelar), onde devemos responder os quesitos oficiais do exame de lesão corporal, em pessoas detidas que estão sendo conduzidas para audiência de custódia ou para recolhimento nas unidades prisionais e que não apresentam ofensa a sua integridade corporal ou sua saúde. Bem como, não se verifica a ação vulnerante do agressor (o Estado) contra sua vítima (conduzido), não havendo vestígios que possam estar relacionados a sua custódia. Então que crime está sendo apurado?

Assim sendo, o corpo de delito não existe e a perícia está prejudicada.

Apesar de não existir exame preventivo nem perícia preventiva em Medicina Legal, os exames “Ad Cautelam”, das pessoas presas em flagrante delito, estão previstos na Resolução do Conselho Nacional de Justiça, nº 213/12/2015, que no seu Art. 8º orienta a autoridade judicial a determinar a realização do exame de lesão corporal quando, durante a entrevista na audiência de custódia, a pessoa presa alegar que sofreu tortura e maus-tratos enquanto custodiada pelo Estado e a autoridade verificar que  não foi realizado o exame de lesão corporal prévio, ou se as agressões alegadas ocorreram em momento posterior ao exame já realizado, havendo inclusive, recomendação na Resolução (CNJ) nº 213/12/2015 que a autoridade judicial elabore uma quesitação específica para o perito responder. Fora isto, o exame de lesão corporal “Ad Cautelam” tem uma conotação puramente preventiva, de salvo conduto para a autoridade policial, resguardando-a de que não usou violência ao fazer seu interrogatório, ou quando o preso esteve sob sua custódia.

Quero também ressaltar que, antes mesmo da audiência de custódia, se o detido apresentar vestígio, ou histórico, de que sofreu violência, no momento de sua prisão, ou quando esteve na delegacia de polícia sob a custódia do Estado, o corpo de delito existe e o exame de lesão corporal é obrigatório e indispensável, pois além de ser um direito do custodiado, há previsão legal. Lembrando ainda que, nestes casos, os quesitos a serem respondidos são os de tortura e maus tratos e não os quesitos oficias do exame de lesão corporal.

Como eu faço essa perícia?

Eu obedeço a determinação da autoridade e realizo a perícia solicitada como Exame de Lesão Corporal, não questionando a sua determinação nem a quesitação incorreta. Deixo bem claro na minha descrição, que durante o exame ectoscópico eu não evidenciei sinais externos de lesão corporal de interesse médico legal.

Na discussão eu falo que também não encontrei uma ação vulnerante de um agressor (neste caso o Estado) contra o conduzido que possa estar relacionados a sua custódia. E que por não existir vestígios, o corpo de delito não existe e a minha perícia estará prejudicada.

Na minha conclusão eu finalizo dizendo que diante do exposto, concluo que a perícia está prejudicada, pois não existe corpo de delito constituído para exame de lesão corporal. E por último, respondo todos os 7 quesitos oficias com a resposta PREJUDICADO.

Você vai me perguntar e quando o conduzido apresentar lesão corporal no exame ectoscópico, como será sua perícia?

Se as lesões encontradas não estiverem relacionadas a custódia, e o preso veio para Exame de Lesão Corporal porque está sendo conduzido para a audiência de custódia ou para ser recolhido a unidade prisional, eu considero um exame “Ad Cautelam“, mesmo que não haja esta referência no ofício que a autoridade determinou a perícia e finalizo a minha perícia da mesma forma, com a mesma conclusão e as mesmas respostas ao quesitos.

O que diferencia é a descrição e a discussão da minha perícia. Na primeira eu descrevo todas as lesões encontradas “VISUM ET REPERTUM” e na discussão eu afirmo que as lesões descritas têm, ou não têm, nexo causal com o fato historiado. Porém, que não existe a ação vulnerante do agressor (o Estado) contra o conduzido e desta forma a ofensa a sua integridade corporal e os vestígios encontrados não têm nexo causal com sua custódia pelo Estado. Assim sendo, o corpo de delito não existe e a minha perícia estará prejudicada, pois se trata de um exame de lesão corporal “Ad Cautelam”.

Simples assim…


Se você como eu, agora tem consciência desta impropriedade doutrinária, vamos lutar para que isso não se perpetue nas Academias de Polícias. Só assim formaremos as novas gerações de médicos-legistas, conhecedores da verdadeira doutrina médico legal para que possam trabalhar nos seus Institutos sem condutas automatizadas pelo conhecimento distorcido.

Se você discorda do que foi postado, comente aqui. Nos mostre sua opinião, pois o conhecimento tem que ser compartilhado sem barreiras.


Referências bibliográficas:

[1] BRASIL, Código de Processo Penal: Decreto Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. 1941 (acessado 8 Jan/2019).

[2] C.-E.-L.P. Leme, Medicina Legal Prática Compreensível, 2ª ed., Editora Espaço Acadêmico, Barra do Garças – MT, 2020.

Murilo Valente-Aguiar

Médico Perito Oficial Legista da Polícia Civil do Estado de Rondônia. Exerce sua atividade no Instituto Médico Legal Dr. José Adelino da Silva em Porto Velho - RO

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