O Manual da SPSP e SBP não incluiu a revitimização das crianças pelos pediatras.

edição do Manual (São Paulo, 2018)

Recentemente fiz uma postagem sobre a revitimização das crianças e adolescentes com suspeita de serem vítimas de agressão sexual.

Vamos dar um basta na revitimização das crianças.

Conversando com a colega Dra. Elba Miranda (Pediatra em PVH) e as Dra. Rosilei de Lima e Dra. Carolini Castro (Delegadas da Polícia Civil de PVH), que como eu, também se preocupam com a revitimização que ocorre nos casos de suspeita de agressão sexual pela adoção das diretrizes para o atendimento humanizado às vítimas de violência sexual (Decreto Lei 7.958, de 13 de março de 2013), resolvemos criar uma força tarefa para elaborarmos um protocolo mais eficaz, que priorize o primeiro atendimento no IML, o que diminui, consideravelmente, essa revitimização das crianças e adolescentes.

Hoje a Dra. Elba me encaminhou, pelo WhatsApp, a 2ª Edição do MANUAL DE ATENDIMENTO ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA, elaborado pela Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP) juntamente com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e o Conselho Federal de Medicina, lançado em São Paulo em 2018, para nosso conhecimento dos procedimentos adotados por estas Sociedades durante o atendimento dessas vítimas de violência, mas notadamente, no que tange ao atendimento das vítimas de agressão sexual, que é o foco da nossa inquietação.

O manual é fantástico. Bem didático. Contempla todos os tópicos de violência contra as crianças e adolescentes. Escrito por um time de profissionais gabaritados, das mais diversas especialidades, inclusive um Médico-legista. Porém, também peca no protocolo de atendimento das vítimas de agressão sexual. Cometem os mesmos erros que queremos corrigir.

A seção do livro que nos interessa, a priori, é o Capítulo 15. Roteiro de atendimento, notificação e acompanhamento. Onde é deixado bem claro que a prioridade é o atendimento emergencial da criança, independentemente da situação da investigação policial. Sendo atribuição do médico:

– Prescrever a profilaxia para doenças sexualmente transmissíveis e, se for o caso, para contracepção de emergência;
– Propor o encaminhamento para serviços que ofereçam abortamento legal, nos casos que resultem em gestação, se for o desejo da vítima;
– Encaminhar para atendimento psicológico.

Até aí tudo bem, porém me preocupa quando também é definido como atribuição do médico atendente:

– Colher as provas forenses se tiverem de ser realizadas durante o atendimento emergencial e não houver tempo hábil para encaminhamento a serviço especializado (IML).

Não sei se esse material colhido pelo médico atendente terá valor jurídico como prova material do delito, mesmo o Manual recomendando que as testemunhas do ato assinem o documento identificando o material com todo rigor. Se isso bastasse, qualquer exame realizado por interesse da vítima ou do agressor, no meio privado, seria aceito pelos tribunais criminais. O material tem que ser processado no laboratório criminal. Estou errado? Esse material será encaminhado para processamento no laboratório criminal? Como seria a cadeia de custódia?

Como acontece na minha cidade, o Manual preconiza que só após o atendimento médico nos casos de suspeita de violência sexual e/ou física com lesões graves, negligência grave e em situações de envenenamento, o responsável pela criança ou adolescente deverá lavrar o BO em uma delegacia, de preferência especializada no atendimento à infância e juventude ou família, e o paciente deve ser encaminhado para exame de corpo delito pelos peritos do IML.

Quando trata da revitimização, o Manual deixa claro que o risco de revitimização, existe quando o agressor não pode ser controlável ou a família é incapaz de proteger a vítima, bem como nos casos de autoagressão. Não lembra de incluir que os exames clínicos que as vítimas são submetidas na suspeita de violência sexual, muitas das vezes sem objetividade e que até podem contaminar a prova material, também as está revitimizando. Sei que se faz necessária a internação hospitalar nos casos acima citados para garantir a proteção das vítimas, mas que essa internação só ocorra depois da perícia forense.

Nossa proposta de mudança no protocolo de atendimento dessas vítimas, é que a criança seja levada diretamente no IML, onde esse primeiro atendimento será realizado pelo médico-legista de plantão, que já descartará mais de 80% dos casos suspeitos de abuso sexual, liberando as crianças para o retorno ao lar, sem internações hospitalares desnecessárias.

O exame do médico-legista tem que ser o primeiro e o único exame a ser realizado na criança.

A perícia no IML é rápida e priorizada nestas situações e, nos casos concretos, onde o médico-legista materializou os vestígios do delito em apuração, serão encaminhados para o atendimento pediátrico especializado.

Da forma que as crianças e adolescentes são atendidos hoje na minha cidade, as vítimas ficam internadas no hospital infantil, demorando de 2 à 5 dias para que o médico-legista seja determinado para realizar a perícia, em local inapropriado, onde muitas das vezes pela demora da realização da perícia já se perdeu a oportunidade de coleta de evidências que materializariam o crime.

Espero que os responsáveis pela elaboração deste Manual reconheçam que a forma preconizada pelo Governo e acatada pela Sociedades Médicas está revitimizando as crianças e modifiquem essa conduta atual na próxima edição.

Veja o Manual on-line abaixo:

Murilo Valente-Aguiar

Médico Perito Oficial Legista da Polícia Civil do Estado de Rondônia. Exerce sua atividade no Instituto Médico Legal Dr. José Adelino da Silva em Porto Velho - RO

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