Piranhas criaram fama e se deitaram na cama!

Criou fama e se deitou na cama.

É uma expressão que conota a ideia de que uma pessoa por ser famosa recebe os créditos de algo que ela não fez. Isso também acontece em outros níveis no reino animal.

As piranhas até hoje são responsabilizadas como a espécie devoradora de homens nos rios da Amazônia. Esse equívoco é compartilhado tanto fora do Brasil como por nativos da própria região amazônica.

Recentemente publicamos um artigo sobre a Ictiofauna cadavérica do Rio Madeira onde demonstramos que os responsáveis pelas lesões encontradas nos corpos resgatados do rio são os candirus e a piracatinca [1].

As piranhas

Estes pequenos peixes carnívoros de água doce, muito ágeis, com dentes afiados, capazes de destruir um pedaço de carne em segundos são as espécies que os viajantes mais temem. Sua dieta é composta por pequenos peixes, moluscos, crustáceos, répteis e carcaças de animais mortos. Elas ajudam o ecossistema amazônico a se livrar das toxinas geradas pela abundancia de carne em decomposição nos leitos dos rios[2].

Das várias espécies de piranha encontradas na bacia amazônica, apenas duas espécies têm relatos de ataques humanos na região.

piranha vermelha (Pygocentrus nattereri) é a espécie mais agressiva. Isto porque suas mandíbulas são mais fortes e os seus dentes mais acentuados.

piranha preta (Serrasalmus rhombeus), que geralmente é maior que a espécie anterior, porém essa se alimenta das escamas e barbatanas de outros peixes.

Piranha vermelha
Piranha preta

Essas espécies são encontradas em rios, igarapés e lagos, de águas, preferentemente, límpidas e com pouca correnteza, frequentando as margens do Rio Madeira apenas quando estão mudando de área. Utilizam o rio como passagem, pois o Rio Madeira tem águas barrentas e correnteza muito forte o que não lhes fornece condições de habitat ideal[1, 2].

No período de outubro a abril ocorrem as enchentes, em virtude do volume de chuvas na região, e os rios transbordam invadindo a mata ciliar. São as florestas inundadas, onde encontramos a maior concentração de piranhas que caçam em bandos e dão ênfase para peixes moribundos ou feridos.

A lenda

“As piranhas poderiam despedaçar ou devorar qualquer homem ou animal ferido, pois o sangue na água excitaria estes peixes até a loucura.”

As piranhas ganharam a fama de devoradores de homens através do presidente americano Theodore Roosevelt, que em 1914 em seu relatório “Através do Sertão Brasileiro” narra a expedição científica que ocorreu entre 1913-1914 e teve como líderes Marechal Cândido Mariano Rondon e ele próprio[3].

Theodore Roosevelt
1858 – 1919

Neste documento, Roosevelt relatou que as piranhas poderiam despedaçar ou devorar qualquer homem ou animal ferido, pois o sangue na água excitaria estes peixes até a loucura.

Essa opinião se deu pelo fato dele ouvir os relatos dos habitantes de Concepción, na região pantaneira do Paraguai, que se o gado é empurrado para dentro do rio, ou por sua própria vontade, entra na água, eles geralmente não são molestados; mas se, por acaso, algum desses terríveis peixes morder o animal o sangue liberado na água excita os membros do cardume faminto, e a menos que o animal atacado possa escapar imediatamente da água, ele é devorado vivo.

Tal relato acabou perpetuando a expressão popular “Boi de Piranhas“. Designa uma situação em que um bem menor e de pouco valor é sacrificado para que em troca outros bens mais valiosos não sofram dano. Essa expressão é erroneamente substituída pela “Bode Expiatório“, que tem significado completamente diferente. Significa que alguém que é escolhido arbitrariamente para levar (sozinho) a culpa de uma calamidade, crime ou qualquer evento negativo (embora não o tenha cometido).

Boi de Piranhas

O medo

Os estúdios cinematográficos de Hollywood aproveitaram o sucesso de bilheteria do filme “Tubarão (1975)” e lançaram o filme “Piranha (1978)” que teve como inspiração o relato “assustador” do ataque das piranhas no relatório de Roosevelt, colaborando ainda mais com a falsa lenda das piranhas devoradoras de homens.

O sucesso foi tão surpreendente que permitiu a criação de outros filmes com a mesma temática nos anos seguintes.

Os ataques

As piranhas têm essa fama apesar da ausência de relatos confiáveis de pessoas atacadas e mortas por esses peixes.

Três casos de cadáveres humanos que foram registrados no Mato Grosso, oeste do Brasil, como tendo sido atribuídos ao ataque de piranhas, ocorreram após a morte por outras causas (por exemplo, insuficiência cardíaca e afogamento), e podem as piranhas os ter devorados por serem carnívoros oportunistas[4].

Por outro lado, sob alguns aspectos das lesões descritas, essas mortes podem ter sido erroneamente atribuídas às piranhas.

Estes peixes predadores, no entanto, ocasionalmente ferem veranistas em lagos e rios do sudeste e nordeste do Brasil.

A mordida típica consiste em uma única ferida circular, semelhante à cratera de vulcão, com laceração dos tecidos, localizada, quase sempre, nas extremidades dos membros inferiores[5].

Mordida de piranha

As lesões causadas por piranhas ocorrem principalmente no verão, quando as pessoas estão nadando em águas represadas, em virtude de seu comportamento territorialista no período de reprodução da espécie, ao proteger o local da desova e os alevinos (além das mordidas resultantes do manuseio descuidado dos peixes pelos pescadores)[5].

Conclusão

As piranhas alimentam-se de peixes vivos, doentes ou sangrando e, raramente, comem carniça e quando comem é por serem carnívoros oportunistas. Os corpos afogados nos rios da Amazônia que apresentam ação da ictiofauna cadavérica, tem essa ação erroneamente atribuídas às piranhas.

O corpo humano não faz parte do cardápio das piranhas.

Referências

[1] Valente-Aguiar, M.S., et al., Cadaveric ichthyofauna of the Madeira River in the Amazon basin: the myth of man-eating piranhas. Forensic Sci Med Pathol, 2020.
[2] Queiroz, L.J.d., et al., Peixes do rio madeira. 1 ed. Vol. 2. 2013, São Paulo – Brasil: Dialeto Latin American Documentary.
[3] Roosevelt, T., Through the Brazilian Wilderness, C.S. Sons, Editor. 1914, Projeto Gutenberg’s: New York. p. 410.
[4] Sazima, I. and S. de Andrade Guimarães, Scavenging on human corpses as a source for stories about man-eating piranhas. Environmental Biology of Fishes, 1987. 20(1): p. 75-77.
[5] Haddad, V., Jr. and I. Sazima, Piranha attacks on humans in southeast Brazil: epidemiology, natural history, and clinical treatment, with description of a bite outbreak. Wilderness Environ Med, 2003. 14(4): p. 249-54

Murilo Valente-Aguiar

Médico Perito Oficial Legista da Polícia Civil do Estado de Rondônia. Exerce sua atividade no Instituto Médico Legal Dr. José Adelino da Silva em Porto Velho - RO

Este post tem 3 comentários

  1. Tânia Catro

    Sensacional, Parabéns.

Compartilhe seus conhecimentos. Deixe sua opinião nas minhas postagens.