Vamos dar um basta na revitimização das crianças.

A revitimização das crianças abusadas sexualmente.

Já fiz uma postagem anterior sobre abuso infantil aqui no Blog. Agora quero discutir uma situação que está me incomodando muito, não só por serem crianças as vítimas e eu ter um apreço maior por elas por ser Pediatra e Cirurgião Pediátrico, mas sim, porque elas estão sendo revitimizadas, desnecessariamente, pelos operadores do direito.

O exame do médico-legista tem que ser o primeiro e o único exame a ser realizado na criança.

Não sei qual a repercussão, na cidade de vocês, com a entrada em vigor do Decreto Lei 7.958, de 13 de março de 2013, que estabelece diretrizes para o atendimento humanizado às vítimas de violência sexual.

Aqui na minha cidade, o MP elaborou um documento, com o fluxo de atendimento dessas crianças com a suspeita de agressão sexual.

Tão logo seja levantada a hipótese de abuso sexual, a criança deverá ser encaminhada para o hospital infantil (hospital público), onde é acolhida, atendida na urgência pediátrica e submetida ao protocolo de medicações para prevenção de DST; mesmo que não esteja confirmada a agressão sexual.

Se o problema fosse só esse, tal conduta seria até aceitável, ao estarmos pensando em proteger a criança. Porém, na verdade, trata-se de um suposto crime e se faz necessário a materialização do delito por um perito oficial médico-legista. E até chegar a ocorrer o exame pericial essa criança foi revitimizada inúmeras vezes.

Por quê? Vejamos…

A criança ao chegar no hospital é atendida na urgência por um pediatra que, na maioria das vezes, é um residente da clínica pediátrica e, normalmente, ele está acompanhado por alguns acadêmicos de medicina que estão realizando seu internado e todos querem saber da história e participar do exame da criança.

É normal a criança estar com medo e essa quantidade de pessoas estranhas querendo tocá-la e interagir com ela aumenta mais o seu stress, o que dificulta esse exame tão delicado.

Como se não bastasse, o consultório pediátrico não dispões de equipamento adequado e o colega que atende a criança, neste primeiro exame, não tem traquejo para realizar o exame corretamente. Na dúvida ele chama o pediatra responsável pelo plantão e outra vez a criança é examinada, pelo pediatra responsável com a assistência do residente e dos acadêmicos. Esse pediatra após o exame, comenta com o residente e os acadêmicos que ele tem dúvida, se houve ou não a agressão e, pede um parecer especializado da ginecologia.

Horas depois, começa tudo de novo, chega o residente da ginecologia, acompanhado pelos acadêmicos que estão passando pela cadeira da ginecologia no internato, conversa com a equipe que realizou o primeiro atendimento, para esclarecer qual o motivo que a ginecologia foi acionada, conversa com o responsável pela criança para saber do histórico da suposta agressão e tenta realizar outro exame. O residente da ginecologia, também tem suas dúvidas e acha melhor chamar o ginecologista responsável pelo plantão que tem mais experiência para examinar a criança. Já com muita dificuldade em virtude do stress da criança, o ginecologista tenta examinar mais uma vez essa criança.

Depois de grande dificuldade, comenta que, pela suspeita do abuso sexual, o correto é chamar o médico-legista de plantão no IML para fazer o exame e definir se houve ou não a agressão sexual, já que eles estão mais acostumados a examinar, com rigor, esse tipo de situação.

Todos se entre olham, com cara de espanto e alguém resolve acionar a assistente social de plantão, para junto com os pais, providenciar o registro da ocorrência de agressão sexual na Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA), que até o momento não fora feito.

Até isso ocorrer, já se passou pelo menos 2 dias. A criança continua internada no hospital infantil, sendo medicada, muitas vezes por via endovenosa, a mãe desesperada porque tem outras crianças que ficaram em casa sem supervisão e sob cuidados de terceiros.

O delegado da DEPCA, toma ciência do fato ocorrido, manda registrar o boletim de ocorrência policial e providencia o ofício determinando que seja feito o ECD, na modalidade de Exame de Práticas Libidinosas – Externo, já que a criança está internada e não pode ser levada ao IML.

O médico-legista de plantão se desloca para o hospital infantil. Ao chegar no hospital, a criança é levada para uma sala de atendimento de emergência ou de curativos, onde também não existe as condições mínimas para um exame pericial de qualidade, com acesso venoso, irritada, chorando e a mãe com a mão para cima carregando o frasco de soro. Se o médico-legista não levou sua bateria de swabs para coleta de material, vai ter que ficar horas esperando alguém conseguir as zaragatoas que ele precisa.

Enquanto espera, o médico-legista conversa com a família, explicando o que vai ser examinado, o material que será colhido e aproveita para colher o histórico da suposta agressão. Na maioria das vezes, ao escutar da família, e saber o que ocorreu de fato, o médico-legista já tem quase certeza de que não houve agressão sexual.

Em uma das vezes que fui realizar um exame dessa natureza no hospital infantil, o histórico era que um colega da escola passou a mão nas partes íntimas de menina, e pasmem, por cima da roupa, e a mãe queria saber se poderia ter sido lesionado o hímen da criança e ela ter perdido a virgindade, pois ela olhou a vulva da criança e viu que estava muito vermelha e que ao fazer a higiene a menina falou que estava ardendo. O pediatra viu os entalhes fisiológicos no hímen e achou que se tratavam de roturas himenais e mandou acionar a polícia, chegando ao cúmulo de a criança passar por todo esse sofrimento, internada, sendo medicada e aguardando o exame pericial, onde constatei apenas uma vulvovaginite, patologia frequente nessa faixa etária pela falta de higiene adequada.

Numa outra oportunidade quando houve agressão sexual, com rotura himenal por manipulação digital, foi impossível determinar o perfil genético do agressor, pois existia tantos perfis genéticos diferentes do da vítima que o equipamento não conseguir separá-los. Isso ocorreu antes da pandemia, quando os médicos não costumavam utilizar máscaras de proteção facial durante o exame. A criança passou por vários exames e durante os exames os médicos conversavam, sem o uso de máscaras, explicando para os alunos os achados no exame e acabaram contaminando a criança com seus perfis genéticos.

Alienação parental

Apenas 10% das perícias realizadas confirmam a agressão sexual, o restante são suspeitas de abuso causada pela ruptura dos laços conjugais, quando surge a alienação parental com a disputa pela guarda de filhos e instrumentos de vingança e revanchismo advindos da quebra de sentimentos ocorrida entre os pais, ou patologias corriqueiras da idade infantil.

Caso o médico-legista, consiga materializar a agressão sexual, aí sim, essa criança deverá ser encaminhada para o hospital para atendimento clínico e não o inverso.

Temos que dar um basta nessa revitimização.

Murilo Valente-Aguiar

Médico Perito Oficial Legista da Polícia Civil do Estado de Rondônia. Exerce sua atividade no Instituto Médico Legal Dr. José Adelino da Silva em Porto Velho - RO

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